O que as 50 músicas mais ouvidas no Brasil representam sobre nós?
Ouvimos o que gostamos ou apenas gostamos depois de muito ouvir? Como o mercado influencia no gosto musical do brasileiro.
Esse mês saiu uma nova lista de canções mais ouvidas do país, divulgada pela agência PróMusica (ex-Associação dos Produtores de Discos - ABPD). Foram listados os 50 fonogramas que fizeram a cabeça do brasileiro no primeiro semestre de 2025.
Como sempre, há o predomínio do sertanejo, mas o primeiro lugar ficou com o pagode: a canção Coração Partido, interpretada pelo grupo brasiliense Menos É Mais fez o estilo retornar ao primeiro lugar no chart.
É curioso, e um tanto deprimente, comparar as listas dos livros mais vendidos no Brasil com as músicas mais ouvidas no Spotify. Por aqui, livros como Café com Deus Pai reinam absolutos, vendendo consolo embalado em frases de efeito, enquanto por exemplo, o novo livro do Ruy Castro, sobre os efeitos da Segunda Guerra no Rio, passa batido. No som, lidera o pagode romântico Coração Partido, do Menos É Mais, que é só uma versão de um hit do Alejandro Sanz, aquele mesmo que fez o país cantar no final dos anos 90.
E aí fica a velha pergunta: será que tudo que é popular é ruim? Ou somos nós, um tanto elitistas, que torcemos o nariz para o que muita gente ama?
Talvez o problema seja ainda mais fundo, e mais incômodo. Theodor Adorno já dizia que, na lógica da indústria cultural, a arte vira produto de prateleira, moldado pra não tirar ninguém do lugar. Tudo é feito pra entreter, não pra incomodar; pra reafirmar o que já sabemos, não pra provocar. O mercado entrega narrativas mastigadas, refrões previsíveis, livros de frases prontas. E nós, exaustos aceitamos e nos vinculamos afetivamente com elas.
Coração Partido é só mais um exemplo. Foi trilha de Torre de Babel em 1997 e tocou até enjoar. Outro? Vem Galopar, a versão de Pagode Russo que a Juliette gravou e que explodiu no São João do ano passado. O hit do carnaval este ano, Resenha do Arrocha, é um pout-pourri de piseiros reunidos numa única faixa. Além disso, o sertanejo segue firme, sustentado por cifras altíssimas, pagando playlists, posts e espaços privilegiados nos feeds.

O topo do Menos É Mais só reforça isso: a banda é da Som Livre, que, mesmo sem a Globo, ainda é quem manda no jogo. Não é por acaso que estão lá. É investimento puro.
Mas será só culpa da indústria? Ou é também o retrato dos tempos em que vivemos? Num mundo onde o neoliberalismo transformou tudo em performance, inclusive o lazer, quem tem cabeça ou tempo pra mergulhar num disco experimental gravado por um bicho-grilo como de Zé Ibarra ou num livro de 500 páginas escrito por um imortal da ABL sobre o Rio na guerra?
Depois de jornadas exaustivas, bicos, boletos, insegurança e redes sociais esfregando na cara o que “deveríamos ser”, é quase natural buscar o que é rápido, familiar e imediato. É bem mais fácil cantar um refrão que já fez sucesso vinte anos atrás do que se arriscar num som ou numa história que exijam silêncio e entrega.
Dizemos que consumimos o que queremos, quando, na real, como lembrava Adorno, só estamos reproduzindo o que foi milimetricamente embalado pra nós.
A força do mercado, somada ao cansaço cotidiano e ao desejo legítimo de aliviar a mente, empurra muitos para o caminho mais fácil: a melodia familiar, mesmo que reciclada em outro idioma, ou a mensagem pronta de fé e otimismo servida pela autoajuda.
Não é só uma questão de gosto pessoal, mas o reflexo de um tempo em que tudo, até o lazer, precisa ter propósito, render algo, compensar o tempo investido. Assistir a um filme mediano ou ouvir um disco que exige atenção virou quase um desperdício. Vivemos tão presos à lógica da eficiência que até o entretenimento precisa ser eficaz.
Por isso, opta-se pelo garantido: aquilo que entrega satisfação imediata. Arriscar-se num livro difícil ou em qualquer outra obra que demande mais atenção, soa como ousadia desnecessária. E assim, afastamo-nos das descobertas que só o imprevisível é capaz de oferecer.
Nesse cenário, o mercado nos oferece pequenas variações do mesmo conteúdo, sustentando a sensação de que temos controle sobre nossas escolhas, quando, na prática, seguimos consumindo o que já foi validado e testado para agradar.
Não há saída fácil e talvez não haja saída alguma. No próximo semestre, vão aparecer outras listas, com outros hits que já conhecemos antes mesmo de ouvir. E seguiremos repetindo o que nos oferecem, embalados pela sensação confortável de estar no controle, enquanto o mercado conta o lucro e agradece.
Quem sabe reste a pergunta mais incômoda: até que ponto somos mesmo donos dos nossos gostos?
a rádio toca o que você quer ouvir ou você quer ouvir o que a rádio toca?
fica aí o questionamento...
Sempre houve uma distância entre o mainstream musical e a música que se faz em nichos. Hoje, com a Internet e a segmentação dos mercados, essa distância virou um abismo. Há alguns meses ouvi o trabalho de um pianista/compositor nordestino maravilhoso, premiado inclusive lá fora, mas que até então eu desconhecia - e olha que eu adoro música independente. Fiquei me perguntando porque demorei tanto para conhecê-lo, já que ele tem mais de uma década de estrada, e concluí que isso aconteceu porque faltam grandes veículos de aglutinação desses artistas.